sábado, 30 de abril de 2011

.um segundo para o fim do mundo.





Leia ao som de Heads Up - Karen O and the Kids


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- Posso deixar a Amber em casa sozinha enquanto busco a Hanna no ballet hoje?
- Até daria Jenny, mas estaremos do outro lado do país, se acontecer algo com você, não teremos como ajudar vocês- respondeu-me ela com preocupação, tinha sempre muito receio em dizer não aos meus pedidos.
- Ah mas não vai acontecer nada - respondi com descrença de ser possível acontecer algo, afinal já eram onze meses e nenhum acidente, veja bem vocês.
De toda forma acharam melhor que eu não deixasse ninguém em casa, primeiro eu precisava buscar Amber na aula de desenho e depois Hanna no ballet, e tudo isso naquela bicicleta esperta, com caixote na frente, a famosa bakfiet.
E lá fui eu, era um dia ensolarado de outono, um pouco frio, coloquei uma musica marota e fui cantando, feliz, despreocupada, já tão habituada ao caminho, minhas pernas me levavam, a mente podia ir a qualquer canto, assim eu acreditava, até então.
Fiz meu caminho favorito, pela rua de casas ponteadas (foto) e a beleza do dia me deu vontade de cantar e cantar, chegou então a hora de virar, porem virei com muita velocidade e só com uma mão na direção, a bike pendeu pra um lado e eu perdi o controle da mesma, fui com certa velocidade em direção a um carro que vinha na direção contraria, afinal a bike foi, com vontade própria pra mão errada, e eu fui gritando ahhh, e aconteceu todas aquelas coisas né, que acontecem quando você visualiza sua morte, a vida passa toda diante dos olhos e tudo mais em questões de um segundo, e eu não aceitei a realidade e joguei a bicicleta pra calçada, que bateu com força na guia, quase subiu, mas não deu, ao invés, foi direcionada para a mão certa, o carro já tinha parado no meio da avenida, ufaaaa, foi um alívio, recobrei os sentidos e agradeci cem mil e quinhentas vezes pela vida e por todos os ossos intactos naquela hora.
Segundos depois não consigo mais pedalar, pneu da frente furado. FAIL. Tive que arrastar a bicicleta até o centro cultural onde Amber tinha aulas de desenho, fechei ela na corrente (a bike) e fui atras de conseguir alguem que pudesse me ajudar. Encontrei uma mãe bondosa, mas que não falava nenhum inglês "vamos lá holandês, chegou tua hora" e foi assim, que consegui que ela levasse a Amber até a escola de ballet, o carro já estava cheio, e fui andando todo caminho, trinta gorgeous minutos, mas nem liguei, sinceramente, fazia o fim de tarde mais bonito de toda minha estadia, tons em cortes em laranja e rosa no céu azulado, e caminhando pude visualizar tudo isso com mais calma, faltava só um mes para o fim, e fui me despedindo assim, com calma do caminho tão habitual, mas tão efêmero.
Na escola de ballet, eu, Amber e Hanna juntas, conseguimos uma nova carona, dessa vez pra casa, com um outro pai muito bondoso. Em casa jantamos juntas e rimos e papeamos com aquela cumplicidade verdadeira que eu só conseguia ter com elas, as coloquei pra dormir, e toda aquela energia, naquele ponto já não me era nada ruim, só divertido, só antecipadamente nostalgico.
Nunca contei pra ninguem do quase acidente.


Afinal nunca havia acontecido nada de verdadeiramente ruim.

domingo, 24 de abril de 2011

.zdravo!.


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Era uma rua tão estreita, no lado turco da cidade, nada longa e até hoje ainda me pego pensando em quantos universos ela era separada.
O primeiro barracão que Dominique me levara, ainda herança do terremoto de 63, abrigava a sede da escola de danças folclóricas macedônias. 
Fomos muito bem recebidos, Dominique era muito influente nos meio culturais e socio-politicos de Skopje, e logo fomos afetuosamente convidados para assistir ao ensaio que a pouco começara.
Uma banda marota tocava as canções todas ao vivo, canções que cerca de quarenta homens e quarenta mulheres cantavam com uma força que fazia o coração bater mais forte, e com passos de danças ensaiados que me prenderam o olhar, não conseguia desviar, principalmente quando os homens pulavam muito alto e rodopiavam e pulavam novamente e cantavam com uma precisão fascinante.
Cantavam musicas em principal em idioma macedonio, por vezes albanês e até mesmo em linguagem roma. O mestre, um senhor de cabelo ralo, era rigido ao mesmo tempo que era terno e paternal, sorria em nossa direção com freqüência, um sorriso extremamente acolhedor e modesto.
Logo depois do ensaio macedonio, saimos e paramos no barracão ao lado, era o ensaio de dança das crianças turcas, não tinham uma banda, tinham um aspecto mais simples e fizeram questão de mostrar a estrangeira que vinha de tão longe sua dança mais bonita, toda cantada em árabe com dança sutil e leveza de mãos, uma criança linda não me desviava o olhar curioso, e não pode entender nada do que eu disse naquela noite de lua tão cheia e sincera na capital da Macedônia. Deixei a rua, onde tantos conflitos étnicos e morais coexistiam, aparentemente em paz, atraves das canções.
Era hora de voltar pra casa, eu sempre cumprimentava os taxistas em seu idioma, e isso me reservava uma alegria muito singela e particular.
Em casa, eu e Dominique tomamos sopa de abóbora e algumas boas doses de rakia, a bebida alcoólica mais popular dos balcãs, conversamos sobre a vida, sobre paixões, amores, e ela tinha tantas historias incríveis, que eu deveria ter gravado tudo para fazer um filme um dia.
Nunca vi 65 anos mais cheios de plena juventude como os anos de Dominique, dentro de sua sala ornada pelas aquarelas que fazia diariamente seu pai, nunca vi tanta intensidade dentro de olhos cansados por um corpo frágil, nas entrelinhas das saudades, nas dores das despedidas, de tantos homens, tantas mulheres e tantas linhas escritas pro infinito.
Daquele papo nascia uma cumplicidade que eu mesma nunca ousei tentar verbalizar até agora, em nossos olhos refletiam tantas inquietações comuns, tantos abraços partidos e sonhos, naquela noite, soprando pelos ventos balcânicos.


Foram apenas três dias, mas a melancolia do adeus foi assustadoramente verdadeira.




Skopje, lado turco, outono 2010

segunda-feira, 11 de abril de 2011

.I wanna make it good.

(Leia ao som de Kinderen voor Kinderen - Elsje)


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Era uma noite de sabado, e eu estava com elas enquanto os pais se divertiam em alguma festa de gala pelo país. 
Não me incomodava muito, as crianças holandesas dormiam demasiadamente cedo e eu ficava assistindo filme tranqüila o resto da noite e economizando uma grana pra próxima viagem, só tinha que ativar aquele alarme idiota, checar as trezentas janelas e depois tudo bem, sem contar as noites que Kelsey vinha me fazer companhia nas sessões de cinema em casa, com chá quentinho e croissants do Albert Hein, não havia lugar melhor no mundo, especialmente no inverno.
O momento mais critico no entanto era coloca-las pra dormir, a energia não cessava, às vezes tinha vontade de golpea-las no estômago pra ver se ajudava, mas se nem tapinha de leve podia dar, quem dera um golpe no estômago, a regra sempre havia sido muito clara "faça de tudo para controla-las mas NUNCA use violência física" e aquilo martelava na minha cabeça, toda vez que sentia estar a ponto de estrangula-las ou coisa assim.
Mas segui a regra da boa vizinhança dos monstros do playcenter "não toque neles e eles não tocaram em você" e enquanto elas, em seus dias de monstras, não me tocassem eu sabia que teria forças pra não toca-las.
Mas naquela noite algo saiu errado.
- Quem colocar o pijama primeiro eu escovo o dente primeiro !!!
Elas tinham uma eterna briga dos diachos para ver quem escovaria os dentes primeiro, na verdade era uma merda  ainda termos que escovar os dentes delas, sempre quis mandar pros infernos o dentista imbecil que mandava tais instruções.
Hanna, a mais velha, foi veloz e se trocou primeiro, Amber não aceitou ter perdido, roubou-me o tubo de pasta de dente e saiu correndo gritando pelo corredor, eu fui atras gritando mais ainda
- Me dá aqui esse negocio !
- Não dou, eu vou ser primeiro !!
- Amber não vou falar de novo, me dá logo isso, Hanna já esta de pijama, você esta correndo como louca só de calça jeans !!!
- Nãããããõ - e avançada em diração ao quarto vazio dos pais.
Em um ato de desespero ranquei o tubo de pasta de sua mão, quando dominei o objeto ela me virou uma tapão no braço com toda sua força de menina holandesa e eu no reflexo virei outro tão forte no mesmo lugar, ela começou um choro gritado e doido e saiu correndo pro seu quarto, eu continuei fazendo o que ia fazer, escovar o dente da outra, ouvindo seu choro forte por muitos minutos, de coração cortado, lembrei-me do meu pai, no fundo o tapa que dei doeu tanto em mim quanto nela, no fim acho que tinha era levado dois tapas.
- Jenny, eu quero fazer as pazes (I wanna make it good, em seu ingles tão seu) - veio ela até mim depois de chorar muito, me dando a mão para conversarmos, conversamos e choramos juntas no ombro uma da outra, me restavam somente quatro meses e o medo da separação bateu forte em nossa porta pela primeira então.


Contei aos pais o que havia acontecido, com um certo receio de levar uma bronca por ter então batido em uma delas, not really.


Amber, no entanto, ficou um mês sem poder usar as botas novas.

Amber Straathof por Elton Hipolito






domingo, 10 de abril de 2011

.um minuto de escuro.

(leia ouvindo Fleet Foxes - Blue Ridge Mountains)


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Após o jantar, faltava pouco para eu ter que partir, iria naquela noite visitar outro amigo do outro lado da cidade.
Ele queria revelar um dos seus rolos de filme fotográfico, ouvíamos Fleet Foxes, ou qualquer coisa muito bonita, chez lui, as musicas eram sempre bonitas.
Andava pra um lado e pro outro arrumando os utensílios que precisaria para iniciar o processo de revelação, teve dificuldade em saber qual era o rolo certo a revelar, andando pra lá e pra cá, já me avisava que por um tempo tudo teria que ficar muito escuro, eu permanecia sentada, revelando aqueles meu últimos momentos ao lado dele por um bom tempo.
Tudo estava pronto, os minutos de escuro logo viriam, já estava me preparando para ficar naquele sofa sozinha enquanto ele se esconderia no cômodo mais sem iluminação da casa; o banheiro. Foi quando ele disse:
- Vamos comigo?
Em um pulo tímido decidi acompanha-lo, o segui enquanto apagava todos as lampâdas e luminárias do pequeno apartamento.
Ao chegarmos no banheiro ele disse:
- Esta pronta ? Eu tenho 1 minuto pra conseguir fazer tudo que preciso e teremos que ficar debaixo desse cobertor, para ter certeza que nenhuma luz ira afetar o filme, pronta?
Eu olhava pra ele muito atenta, guardando cada frame com uma preocupação absurda dentro da memória:
- Parece que iremos viajar no tempo com esse seu jeito de falar.
- Vamos então? Fique aqui deste lado, contarei até três... um, dois, três. - elr geralmente comprava todas as minhas viagens de forma tão natural.
E foi um minuto de escuro, uma viagem no tempo imaginaria, só o som do filme sendo manipulado as cegas, onde muitas fotografias mentais daquela minha vida até alí me atacaram abruptamente.


Voltou-se a luz, e pouco depois eu tinha mesmo de partir, ele agora tinha que virar o filme à cada trinta segundos no balcão da cozinha.
- Você só terá 30 segundos para me dar um abraço de despedida. - disse ele com sorriso largo.
E eu fui rindo me despedir.


Foram um dos últimos abraços.


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Paris, winter '10


Paris, inverno 2010, uma festa em algum canto da cidade.











quinta-feira, 7 de abril de 2011

.para sempre luz do dia.



( leia ao som de Sigur Ros - Hoppipolla)


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Já se completava o meu terceiro dia acampando pelo sul da Islândia, com o casal búlgaro-islandês. Tínhamos deixado o acampamento aos arredores da Seljalandsfoss, uma das quedas d'agua mais famosas da ilha, onde eu havia encontrado meu lugar favorito no mundo.
Fomos parar nessa cidadezinha marota, onde estava rolando um festival tão maroto quanto, toda cidade decorada, e pessoas jogando futebol usando coisas engraçadas, tipo um cara de fralda e coisas assim.
Dentro do nosso costume dos últimos três dias paramos na piscina da cidade pra tomarmos banho, todas aquelas europeias eslavas nuas no chuveiro e eu lá cheia de vergonha, tive que vence-la.
Depois uma caminhada pelo vilarejo, desde as casas exoticamente decoradas até a praia, já eram umas 10hrs da noite e o sol ainda brilhava intenso no horizonte.
Tinha uma festa por lá, em uma tenda, começamos a tomar Viking, a cerveja popular, dançamos loucamente com todo mundo, mas pocha, banheiro químico ainda não foi apresentado aos islandeses, foi difícil, mas sobrevivi, sem querer entrar em detalhes.
Conheci um menino de um olho de cada cor, apelidado carinhosamente de Bu, o canibal, já que quando era criança tinha mania de morder as visitas, segundo sua mãe. Ele me levou até a casa de verão do Jonsi, o vocalista do Sigur Rós, que ficava alí do lado, mas pena, ele não estava. Espiei os comodos pela janela, com meus olhos extremamente brilhantinosos.
Já era madrugada e eu já tinha uns cinco ou seis amigos islandeses excêntricos e sorridentes, meus colegas de acampamento já haviam se recolhido, e o céu permaneceu com cor de seis da tarde.

Eu voltei pro acampamento, atravessando um longo campo de mato muito alto, levando minha mão a acariciar a folhagem, contemplando o céu azul brilhoso das 3 da manhã, já com dor nas bochechas de tanto sorrir.

Um dia eu ainda escrevo pro Jonsi, agradecendo por ter me dado a Islandia de presente.


Meu lugar no mundo, Iceland summer '10





quarta-feira, 6 de abril de 2011

.A rua Cospe Fogo, numero cinco.

Deixaram-me sozinha na casa, na rua Spitfire, numero cinco, depois de todo aquele turbilhão de novidades e sentimentos no aeroporto e depois pelos cômodos da enorme habitação, as crianças já tinham corrido comigo por todos os lados, agarrado minhas pernas e me mostrado quase todas suas coisas, rindo, tossindo e rosnando.
Chovia, já haviam me dito que choveria muito naquelas terras, e eles me deixaram sozinha, como eu já havia dito. Tinham uma festa de aniversário e me deixaram, eu fiquei lá contemplando o teto branco, as paredes brancas, os corredores brancos, a vida de vidro...
...em um supetão levantei-me e desfiz toda a mala em um ataque de histerismo contido, dançando, cantando, ocupando a mente, tentando fazer daquela cena toda algo mais normal, era uma normalidade fingida, forçada, mas minha insanidade já havia começado alí, antes mesmo de pregar minha ultima foto, e colocar em todo aquele mundo branco minhas cores de terras já fisicamente tão distantes.
Eles chegaram então, umas três horas depois, como exatamente  haviam dito, foi servido o meu primeiro jantar, pontualmente as seis, sem feijão e sem arroz, meu assento marcado era a cabeceira, onde por muitas refeições daqueles 365 dias eu os observei como em um teatro particular.
Naquela primeira noite falaram, falaram e falaram e eu não entendi nada com coisa alguma, o pensamento que restava "o que vim fazer aqui ? amanhã eu volto pra casa hein"
Não voltei.


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E é assim bom começar pelo começo, o que for vindo, virá.


da janela do quarto