domingo, 27 de maio de 2012

a ligação

Trocamos poucos emails, sempre com um excesso de cordialidade formal, primeiro vieram algumas fotos da casa e da família que eu certeza devo ter olhado mais de 365 vezes, mostrei pro pai, irmão, pros amigos, pra vizinha, e como disse, pra mim mesma, muitas vezes ao dia, era um ínicio de uma ideia que começava a ganhar uma forma alucinante e ao mesmo tempo um bocado assustadora.
Então chegou o dia de uma entrevista por telefone, combinamos as 16h, horário de Brasília e desde as 15h eu comecei a passar mal de ansiedade, às 10 para as 16h eu estava tão nervosa, minha boca ficou tão mais tão seca que meus lábios praticamente colaram nos dentes, e deu 16h - jenny abraçando as pernas, e deu 16h10 e jenny olhando o telefone tão fixadamente acho que essa coisa de piscar nem existia mais, e deu 16h30 - jenny bebendo muita agua pra separar os labios dos dentes, deu 17 - jenny em posição fetal triste por ter sido negligenciada, esquecida, porque jenny é muito dramática.
Resolvi mandar um email, minha vontade era dizer "EEEEEEEI POR QUE ME ESQUECERAM?? EU TO MORRENDO POR DENTRO DE ANSIEDADE" mas apenas disse "Boa tarde, percebi que não tiveram como me ligar, aconteceu algo?" e fui me arrumar para sair, meu pai ofereceu uma carona, fechei a porta da sala, antes mais uma olhadela no telefone "é esqueceram mesmo". Desci correndo as escadas, e quando ia alcançar o automóvel escutei, sim o telefone tocava, berrava, me chamava insistidamente, sabia que eram eles, e eu nem sabia quem eram eles, que seriam meus comparsas, cúmplices de uma família por um ano inteiro...corri de volta, pedi desculpas ao meu pai, abri tudo correndo, esbaforida, atendi e assim foi, a uma hora e meia de conversa que mudaria minha vida para sempre, com aqueles que haviam se confundido com o fuso-horário e não haviam me esquecido, uma conversa que me abriu um mundo, dez anos em um, me levou a vida dessas pessoas que acreditaram em mim mesmo quando disseram o contrário, e achavam bonito eu querer ser palhaça e professora e cineasta tudo ao mesmo tempo, que me irritaram e até chatearam algumas vezes, mas que me aceitaram e me deram chocolate quente no minuto em que cheguei e me amaram da forma deles de amar, em tardes na praia com o céu em tons de azul e rosa, e que mesmo hoje, tanto tempo sem nos vermos, e mesmo pouco nos falarmos, eles estão por aí, ainda fazendo parte de tudo e me fazendo marejar os olhos de quando em quando...de tantas saudades.
Em realidade existem muitas palavras, mas eu nunca vou conseguir explicar nada direito...

A time it was
It was a time
A time of innocence
A time of confidences


Long ago it must be
I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you
:ó)

domingo, 13 de maio de 2012

Marselha e os dois dias

Entrei em um bar colorido de cunho esquerdista estudantil que vendia coisas alternativas e biológicas, o muffin era de couve, por exemplo, o moço por trás do balcão de Cabo Verde, mas nada de falar português, "na França falamos francês", brincava ele. Na verdade tinha crescido em terras francesas e de casa só aprendera o crioulo e os dotes culinários da mãe, que exibia com gosto para os fregueses do bar.
A menina querida que me recebeu na cidade, brilhou pela primeira vez em minha vida em uma tarde ensolarada na Vida Madalena, hoje, em Marselha, tenta montar sua própria companhia de teatro.
Éramos duas a viajar pelo sul das terras de Baudelaire, eu e minha amiga de Bogotá, que só faltávamos correr e dar pulo lateral por estarmos sentindo de novo um senso de realidade que nos fazia lembrar tão vivamente de nossa latino América.
A francesa de coração brasileiro nos foi preciosa guia turística, nos ofereceu um café da manhã francês em sua colorida sala de estar. Na noite anterior jogos teatrais, membros de sua família. Na manhã um mercado de pulgas onde se encontrava de tudo e mais um tanto.
Na ultima noite um jantar brasileiro, pão de queijo, feito com polvilho comprado no Brasil, receita escrita em português de Portugal, difícil de entender, mas deu certo, eu acho.
No fim da noite Capoeira, Brasil mandava um grande beijo terno.
Teve também um terraço muito ensolarado, um menino querido que nos ofereceu café mesmo depois de invadirmos sua casa, sabonetes tradicionais da região, ruas árabes e lojas com tantos temperos que faziam coçar o paladar, lojas apinhadas de poster de cinema, ruas estreitas e peças teatrais de rua, ao acaso.
De meus dois dias de Marselha levei pra memoria as cores quentes, os sons de revoltas trabalhistas, um charme de caos, a luz que brilha intensa chega cega, a realidade viva das coisas imperfeitas e inrotuladas, uma menina que me agradecia a cada gesto e outra que aparece na minha vida de quando em quando, com olhos verdes de saudosismo partilhado e uma flor vermelha no cabelo.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Amor gitano



As pessoas são invisíveis, até que nos demos conta do contexto social e histórico delas.

 Eu fui pra Europa sem saber quem eram os povos Roma, e de repente eles invadiram minha realidade por completo, logo depois que fui pra Macedônia e Dominique me falou tanto sobre eles, antes disso eles me passaram despercebidos.
No Brasil também temos os Roma, mas aqui os chamamos de ciganos, creio que os nossos ciganos são de origem espanhola e na Espanha eles são chamados de gitanos, a imagem que temos deles é daquelas moças com dente de ouro e vestido cheio de cores, que pedem pra ler nossas mãos e podem até mesmo nos levar os anéis, mas em realidade os Roma estão em toda a Europa e em cada lugar eles assumiram uma posição diferenciada, eles são muito comuns na Europa leste, na Macedónia, por exemplo, existe um bairro suburbano de maioria cigana, Choutka, que fui visitar em meu último dia lá, casas humildes e coloridas, cheias de hospitalidade e conversas,  mas todos eles tem essa vontade, devido a miséria, de migrar pra França, Bélgica, Alemanhã e assim vai, e muitos o fizeram, mas as leis de imigração são muito pesadas com eles, os Roma são marginalizados e esquecidos e indesejados por muita gente, ninguém sabe ao certo a trajetória deles, sabe-se que vieram da India por volta de mil anos antes por razões desconhecidas, e esse povo retirante, difícil de se compreender, que falam muitos dialetos, iam assumindo diversas caracteristicas do local encontrado, mantem a pele morena das Índias, e a habilidade para tocar instrumentos como ninguém, no leste são convidados para tocar e dançar em festas de casamento, mas são escorraçados de ônibus de viagens, eu mesma vi acontecer no ônibus que peguei de Skopje para Belgrado, é uma realidade triste, mas cheia de intensidade e mistério. São um bocado paradoxos, tem um sistema de defesa que pode ser hostil, mas a beleza de suas canções me arrepiam a alma, em minha ultima passagem por Bruxelas, encontrei um grupo que tocava em frente a estação, eu contribui com alguns euros e os fotografei, ao sair fui maltratada por um deles que não viu que eu havia já dado alguns euros e esses são os Roma, pessoas difíceis, mas encantadoramente talentosas.
Tony Gatlif, um cineasta Roma de origem argelina erradicado na França fez diversos filmes tentando captar a essencia dos ciganos, e foi no filme Latcho Drom que ele fez o mesmo trajeto dos retirantes começando lá na India subindo até chegar na Europa oeste, e é um filme que me tirou o sono e inquietou o pensamento por muitos dias.
Quando visitei Choutka, passei uma tarde com uma família Roma, junto com Dominique, Estelle e Sylvie, eles nos ofereceram café e chá e biscoitos, e o patriarca da família falou muito macedônio, idioma comum entre ele e Dominique, ele falava nos olhando nos olhos enquanto Dominique traduzia tudo para um francês muito rápido, ou seja, a brasileira ficou em certa desvantagem, mas captei a essência das coisas, maior parte do tempo quis brincar com o neto dele, e brincamos verdadeiramente muito, sem o uso de uma única palavra sequer, naquela tarde eu tive a certeza, eu nunca mais irei brigar e ter rancor por coisas pequenas, e mesmo se o fizer, me sentirei muito mal por isso, não faz o minimo sentido, relações humanas são importantes demais pra isso e aquela foi uma das tardes mais gratificantes de todo meu ano europeu, ter feito rir uma criança que não entederia nenhuma palavra que dissesse.

Deixo vocês com as minhas cenas favoritas de Latcho Drom, pra que possam entender um pouco a essência dos retirantes da Índia, dessa constante diáspora cheia de cores e canções.

Começando onde tudo começou, com a dança fascinante das meninas indianas.


Passando pela Europa Leste com a incrivel Taraf de Haidouks

 

Uma parada de trem na Hungria, sem duvida uma das minhas cenas favoritas de todo filme

 
 


E terminando com a canção apaixonada e triste dos gitanos, enquanto muito deles são retirados das habitações que ocuparam e as portas e janelas são seladas com tijolos e cimento.

 
 


¿Por qué me escupes en la cara?
Qué más te podía hacer ser yo
que por ser morena y gitana?


Os roma instrumentistas de Bruxelas



A família Roma de Choutka (:
















domingo, 6 de maio de 2012

sombra de pernas e aros

Leia ao som de Andvari - Sigur Rós

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Em dia ocioso de sol, minha bicicleta vermelha e eu eramos inseparáveis, com ela eu descia pro lado direito, e direito outra vez, caía na ciclovia que encontrava de fundo com nossa casa, seguia pro esquerdo, passava pela pequena fazenda e suas ovelhas gordas de olhar curioso, adentrava o mundo paralelo do centro de reabilitação para pessoas com necessidades especiais, sempre cruzava um ou outro interno em suas bicicletas tão especiais quanto eles, eles sempre me diziam um olá fascinado, seguia, pegava a rua de casas ponteadas, assim como a Holanda era nas pinturas de minha infância, com direito a estatuas de campesinos e moinhos em miniatura, às vezes descia a ciclovia a esquerda, mesmo caminho pros campos de hockey, e foi lá que pela primeira vez consegui pedalar sem nenhuma das mãos, com ajuda do vento, mas na maioria das vezes apenas seguia em frente e então as casas terminavam e me encontrava em um mundo onde existiam apenas eu, a ciclovia, a bicicleta, vastos campos verdes, a sombra do meu pedalar entre aros refletida no chão, minhas canções, meus devaneios, a eloquência dos sonhos, a incompreensão do existir efêmero em tantas partes, de risos ecoados por toda cidade, de lágrimas com cor de travesseiro, medos e anseios cuspidos entre ausencia de cores, excesso de sentidos, epifanias atravessadas no nó na garganta e novas versões de mim em cada tintilar dos aros de minha bicicleta. Entrava então na ciclovia ladeada de altas e frondosas árvores, creio que minha ciclovia favorita em todo país, raios de sol entre a folhagem, me faziam acreditar na belevolencia do estado das coisas. Não consigo me lembrar de sensação de liberdade, de isenção, permissão de mim para mim mesma mais real do que essa, até hoje se fecho os olhos ainda posso ver, ainda posso ver, ainda posso...ainda.


um dia de fotos em Nootdorp