terça-feira, 15 de novembro de 2011

.sobre a rotina.

Leia ao som de Take me Home - Russian Red


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Devem ter sido por volta de trezentas embaladas de alumínio nos pães para as lancheiras das meninas, manteiga de amendoim pra Hanna, nutella pra Amber. Subir, escovar dentes, fazer os cabelos, entregar as lancheiras, separar umas brigas de quando em quando, dar tchau antes de irem pra escola com os pais, adorar o silêncio, subir, fazer as camas, abrir as janelas pra entrar um ár, fecha-las, pelas sextas trocar os lençóis, descer, ver email, facebook, essas coisas, cochilo, almoço, aquele pão descongelado com manteiga e flocos de chocolate, meu favorito, escrever, ler, ir busca-las, as vezes ir ao mercado, biblioteca. Na escola Amber sempre saia primeiro, me abraçava, jogava a mochila, ia rodar naquelas barras estranhas, pedia pra brincar com uma amiguinha, Hanna sempre pedia pra brincar e sempre demorava, e quantas vezes tinha que dizer não, porque tinha ballet, ou hockey, ou musical, ou qualquer outra atividade que limitava muito o tempo livre daquelas garotas, as vezes dava pena.
A logistica às vezes era complicada, deixar um em um lugar, buscar outra em outro, quiça até rolava almoço pra elas dentro da bicicleta, portanto chegar em casa era sempre um alivio, ainda mais em dias chuvosos ou no inverno quando tinhamos que pedalar no escuro, gostava muito da escola de ballet no entanto, ficava lá com a Kelsey geralmente, tomando chá comendo misto-quente.
Cinco horas começava a preparar o jantar, checava as lancheiras, Amber quase nunca bebia aquele leite de cabra fedido, as deixava assistir tv finalmente, as seis todos à mesa, depois subiam com os pais, eu ficava com a cozinha, e por vezes, quando eles me pediam para fazer babysit, eu ficava com a cozinha e com elas tambem e terminava o dia morta, ainda mais se tivesse sido dia livre da Amber na escola. Amber sempre queria desenhar mais um pouco, Hanna absorta em seus livros, era sempre uma negociação, ela dizia "mais duas paginas" eu "mais uma" ela dizia "mais três", eu "mais duas e ponto final", na verdade só fazia aquilo pra não perder minha autoridade, mas eu jamais iria recusar um pedido de uma criança que quer ler livros, geralmente descia pro meu quarto e só subia quando certeza, ela ja teria lido quase o livro todo, nunca contem aos seus pais dela por favor. rs
Em alguns dias a rotina me corroía, eu não lembro mais desse sentimento, mas sei que ele existiu, nenhum dia era igual ao outro, mas às vezes me sentia presa em uma casa de brinquedo, em um bairro da fantasia, tendo que fazer coisas mecanicalmente todos os dias, não ter que ir a lugar algum, não precisar ser ninguém dentro de um contexto mais coletivamente amplo, não fazer parte de grupos sociais, ser apenas uma desgarrada de sua pátria vivendo na casa alheia com data marcada de fim, às vezes me pegava no quarto das meninas deitada no chão olhando pro teto, ou de beira com o canal, olhando pro céu, que na Holanda parecia tão mais longe de mim, ao mesmo tempo que me sentia tão alí, não me sentia tambem, acho que deve ser um sentimento parecido se alguém fica sabendo a data que irá morrer, eu não iria morrer mesmo, mas iria partir daquela vida dentro de tantos meses, dias, horas e minutos, e cada dia era um dia a menos, e a rotina não mudaria por minha causa, e era a mesma antes da minha chegada, e teria que continuar depois que eu partisse, muitas haviam feito o mesmo antes, e outras fariam depois, não adiantava então lutar contra a rotina, porque ela era muito mais real e tangível que eu mesma, aprendi então em pouco tempo a saborea-la, curti-la e ser amiga dela, me despedia dela aos fins de semana e nos feriados prolongados, voltava meio perdida, mas sentava com ela de novo, tranquilamente no chão do quarto das pequenas, às vezes chorava ao seu lado, sorria, ria e tinha medo do seu fim, pra mim.
Eu parti, a rotina ficou e me partiu em duas.

A rotina da despedida