quinta-feira, 22 de março de 2012

.o mundo dela.

Leia ao som de - The food is still hot - Karen O and the Kids


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A menina mais nova tinha um mundo, o quarto dela era um mundo, paredes coloridas com um papel de parede mágico, tantas coisas e detalhes e cores, era um dos lugares mais coloridos da Holanda e portanto eu me sentia muito bem naquele mundo, o da irmã era bem colorido também, porem esta não passava muito tempo lá e nem me convidava a passar tempo com ela com a mesma frequência que a mais nova fazia.


Quantas tardes passamos ali desenhando de tudo, ouvindo música, principalmente a do gorila alemão com oculos de sol, fazendo adesivos com a maquina de adesivos que dei pra ela de aniversario, fazendo cosquinhas, muitas delas, cabaninhas e cortes e colagens e de vez em quando, uma arrumação fajuta, pra fazer a mãe dela feliz. Ela geralmente sentava no meu colo pra desenhar, e eu ficava lá junto, sentindo o cheirinho doce de seus cabelos louros. Eu nem sou uma desenhista, faço bonecos palitos, mas ela me fazia sentir o máximo porque amava tudo que eu fazia, achava tudo incrível e seguia meu modelo logo em seguida, eu gostava de subverter as coisas, inverter cores pra incitar o lado critico dela e ela ia junto, desenhando pros lados contrários, criando uma liberdade no papel, e lá fora o dia holandês ia se esvaindo, às vezes com sol, às vezes com chuva, neve tambem, e o canal ia passando calmo, ou congelado, e eu continuava a sentir o cheiro doce de seus cabelos por todo ano, e a paz invadia meu coração todas às vezes, podia congelar aqueles momentos pra poder voltar toda vez que quisesse.


Claro também tínhamos conflitos no mundo dela, como quando ela não queria se vestir pra ir pro ballet, ou pro hockey, ou não queria deitar, ou não queria dormir de tarde quando estava doente, e os pais queriam que ela dormisse, mas tudo que ela sabia fazer era me chamar a cada cinco minutos e eu não conseguia nem ir ao banheiro direito, às vezes eu me pegava sendo a louca mais estressada das loucas pra fazer ela se vestir pro treino de hockey que assim como eu ela detestava, gritava com ela, e aí ela começava a se virar toda na cama colocando os pés pra cima e eu me matava pra tentar enfiar a calça de qualquer jeito e no fim a gente sempre acabava rindo de qualquer coisa. Como aquela menina sabia me fazer rir, ela tinha esse poder sobre meu riso que era incrível.


 Às vezes me via cansada da dependencia constante dela, mas hoje, exatamente agora eu daria tudo pra ouvir ela me chamando pra brincarmos em seu mundo colorido de novo, alongando os fonemas finais do meu nome, com seus dentinhos separados, se agarrando em minha cintura, colocando seus pés sob os meus enquanto cantavamos "I'm singing in the rain" :ó)
"I love you so so so much"




sexta-feira, 2 de março de 2012

.Yara.

Yara vinha às sextas e me abraçava com muita verdade, eu esperava aquele abraço a semana inteira.
Ela tomava seu café habitual e contava da sua semana, logo já tirava seus panos egípcios e iniciava a odisseia pra limpar aquela casa gigantesca e eu ia com pesar começar a passar a pilha de camisas do pai da casa, odeio passar roupa e Yara às vezes queria ajudar.
A gente ficava rindo e conversando pelos corredores, mais tarde eu lavava minha roupa e tentava organizar a zona do meu quarto um pouquinho, ela ria de mim.
Ao meio dia era hora do almoço, sempre almoçávamos juntas, ela quase sempre trazia coisas de casa, eu guardava os restos do jantar especialmente pra isso, e faziamos uma junção de tudo e ficava aquele almoço mais árabe e mais brasileiro, nada de pão com manteiga apenas como fazem os holandeses, ficava tão especial que começamos a convidar a mãe da casa para almoçar conosco e nossos almoços viraram tradição na casa.
Yara ria e ria e sorria, falava inglês misturado com holandês misturado com árabe e eu amava ouvi-la falar.
Dançava e ouvia suas músicas árabes que ecoavam por toda casa, me fazia rir e rir e sorrir, às vezes deitava um pouquinho na minha cama, sempre confessava que não fazia os rituais da sua religião, nem rezava mais, dizia que a vida no ocidente não lhe permitia, eu a chavama de "bad muslim" e ela ria mais.
Ela me chamava de querida, ao partir sempre vinha me dar um beijo terno, no rosto, ou no pescoço, e eu depois de um tempo, comecei a misturar holandes com inglês e nos entendiamos mais e mais, daquela forma meio torta, mas com Yara aprendi que gestos falam tão mais alto.
Teve dias que as histórias foram tristes,nem sempre era fácil ser muçulmana trabalhadora vivendo no ocidente e nem ser brasileira latina pobre vivendo na casa de holandeses tradicionais, mas por toda sorte do mundo, eu tive a Yara.
Em sua casa tudo era tão verdade, o cheiro de comida dançava pela casa, suas filhas, Bisan e Ranin, não me entendiam muito mas nos divertíamos tanto sem necessidade de palavras, comíamos tanto e tudo era feito pelas mãos, sem maquinas pra tudo, como na casa holandesa, eu sentia tanta falta dessa verdade.
Em nossa despedida Yara foi forte, eu não, chorei sem conseguir disfarçar, chorei de uma dor que vinha de um profundo tão imenso e a vi partir, seguindo a pé até o tram. Queria poder abraça-la de novo, ainda mais agora que espera um terceiro filho, queria ouvi-la rir de mim e fazer aqueles sons do Egito.


Yara eu ainda vou conseguir fazer o Ramadan pra me lembrar mais vivamente ainda de você, mas ano passado não consegui.
Te amo muito pra sempre.
Última vez na casa dela